26 de mai. de 2011

Cap 20: Todas as dores de amor passam

Todas as dores de amor passam.
A porta bate com força, a roupa cai pela janela, a flor voa no ar. Fotos rasgadas, telefones apagados, cartas em cinzas.Vontade tão psicopata de exorcizar tudo que possa ser matéria de lembrança, de retirar do mundo de fora o menor sinal de bons tempos.
Mais um dia.
Lençóis embolados, travesseiro desconfortável, noite cumprida, sol na parede do quarto, azul nos olhos. A comida não é a mesma, as letras no jornal nada dizem, as músicas machucam, o silêncio é torturador, a mente presa no ontem não consegue voltar.
Um outro dia.
Comer é preciso, o jornal está acumulando na porta, a melodia da vida deve voltar a tocar, chega a hora de silenciar as frases e fixar-se no presente.
Dia após outro.
Onde está mesmo aquele batom, no fundo da bolsa?
Dias e dias
Festa na casa da Claudinha?
Semanas.
Alô? Cinema hoje?Passa para me pegar às seis.
Meses.
Claro que adorei os chocolates, as flores também são lindas.
Semestres.
As fotos da viagem ficaram ótimas.
Anos.
Vamos construir um jardim nos fundos?
Era preciso o adubo ideal. Onde está mesmo o de húmus de minhoca? Aqui em baixo? Não, não é esse outro. Puxa!Desculpa, esbarrei sem querer. Quebrei seu vaso, eu lamento... Você?
Olho e olho. Um frio na barriga que lembra a primeira vez que ele ligou para pedir se podiam dar uma volta na praça. O cheiro do perfume seco, aquele mesmo que sentiu quando fechou os olhos na primeira noite de amor dos dois. A boca com o sorriso capaz de desconsertar seus quarenta. Os braços fortes que tornam o mundo seguro. As mãos que sabem tocar o ponto de êxtase. A aliança.
Tanto tempo.
Ele com aquele mesmo jeans batido, o cheiro do cigarro e de boemia. Ela com sua pasta de executiva e sua aliança também.
Um café? Aceito como desculpas pelo vaso.
Café?
Algum compromisso?
Não. Um café, pode ser, tenho uma reunião com um cliente às quatro, dá tempo.
Mesa dos fundos.
Lado a lado e o café.
Ele é médico, conheci na festa da Claudinha, lembra a Claudinha?
Claudinha, claro. Ela é professora primária, gosto dela, moramos juntos.
Preciso ir ao banheiro.
Ela respira e se vê no espelho. Queria ainda ser tão bonita quanto antes. Mas por que isso importava agora? Que frio na barriga era aquele? Recordação de uma sensação deixada para trás por tanto tempo.
A porta abre.
Ele a puxa para si e crava os olhos em seu rosto tenso. A boca entreabre para um suspiro quente. Juntos era impossível impedir a química da explosão.
Pia.
Bocas.
Mãos.
Roupas.
Você tem reunião às quatro. Olhou-lhe nas pupilas em busca de um motivo para não cometer mais loucuras que aquela.
E você gosta dela. Devolveu a razão de que ele precisava para deixar tudo como está. Sempre era por sua conta por os quatro pés no chão.
Cada um virou para lados opostos da rua.
Ela riu um riso trêmulo.
Ele balançou para os lados a cabeça já de fios brancos.
Todas as dores de amor passam.
O que não passa é o amor.

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