26 de mai. de 2011

Cap 23: Eu, biblioteca

Quando uma pessoa morre é como se uma biblioteca inteira se incendiasse.

Desse ditado africano ficou o latejar de uma idéia. Morremos e tudo queima? Cinzas, fim e pronto? Ainda bem que essa agonia não é de hoje, nem só minha.
Lá nos tempos homéricos, na Grécia, pairava um grande medo de morte nos guerreiros. Isso deve ter um aparente quê de obviedade: quem luta trava uma batalha também contra a possibilidade de perder, e por causa disso morrer. Mas não era essa morte que os guerreiros temiam.

O medo era a morte do significar. A um guerreiro era mais importante ter a glória dos seus feitos heróicos cantada de geração em geração que a vida em esquecimento. Morte pelo vazio da palavra, essa era a dor mais insuportável.

Nós, guerreiros dos tempos dos bytes, temos como inconcebível a não assimilação do todo, uma necessidade quase compulsiva de onisciência. Não ouviu que a ponte caiu? Não soube que o fulano foi preso, ele mesmo, acredita? Não escutou que as tropas saíram do oriente médio? Não leu aquele livro?

Arquivamos, então, jornais, livros, revistas e apostilas em nosso pequenino cérebro e deixamos nossos neurônios, às vezes, desorientados em meio às suas sinapses frenéticas.

Uma queda, uma bala, uma batida, um ataque. Fim. Incêndio?
Não, ainda não joguei a flor sobre o caixão dessa idéia fixa.
Se é realmente assim, que sentido mora nos médicos que passam noites sobre um livro para entender melhor uma microscópica célula? Para que tantos cálculos a fim de fazer um avião mais leve? Por que tantas fórmulas para unir dois átomos? Que função tem internacionalizar o cérebro com várias línguas ?

Se sabemos da certa carbonização, qual o trabalho de nos escrevermos?
O maior medo daqueles que, no período da segunda guerra mundial, alimentaram grandes fogueiras com livros era o poder que estes tinham de mudar o mundo. Só esqueceram que não são os livros que modificam a ordem do cosmos, mas as pessoas que os lêem.
E se essas pessoas também morrem?

Não, isso nunca acontece. Por isso o poder das pessoas-livros.

As pessoas-livro-de-comédia fizeram com que aquela hora enfadonha no escritório tivesse o som de uma risada. As pessoas-livro-de-auto-ajuda nos lembraram que nos amarmos, apesar do olho do outro nos enfeiar, era a lição número um. As pessoas-livro-policial nos mostraram que o inimigo pode estar jantando conosco. As pessoas-livro-de-romance nos ensinaram que a dois a solidão é bem menor. As pessoas-livro-acadêmico nos explicaram que a complexidade da teoria nada é sem a prática. As pessoas-livro-de-arte nos fizeram ler a vida além palavras.

Não conheci o meu bisavó que veio da Itália para morar no Brasil. Mas ele está em mim, não só geneticamente falando. Ele acreditou que era possível vencer, mesmo um oceano de distância de sua terra. E meu avó aprendeu lições que ontem foram do meu pai e hoje são minhas. Lições de ver fazer, de ver perder e ainda sim querer lutar, de cair para aprender, para crescer.

Espelhos que somos nos refletimos.
Não sou a mesma, porque sou grata a um médico que um dia socorreu a minha mãe de madrugada quando esta passou mal do coração; porque um avião pode me fazer chegar à tempo para um último abraço; porque cada um que me ensinou a speaking in inglish o hablar español me fez enxergar o mundo com a lente de outras culturas.

Não sou a mesma, porque dois médicos disseram a minha mãe que meu irmão iria nascer cego e surdo e por isso ela precisava fazer um aborto imediatamente e ela não o fez, meu irmão nasceu perfeito e lindo; porque uma professora me disse que por eu me dar tão mal na prova dela eu não conseguiria entrar para a universidade que eu queria, passei; porque me dizem que escrever num país onde ninguém vai me dar um espaço me faz ter mais inspiração.

Nem eu a mesma, nem os que estão comigo.
Todos nos fazem melhores porque nos dizem que é possível e nos fazem ainda mais forte quando nos dizem que é impossível e ainda assim acreditamos.
Não é a longevidade do tempo que nos tornará inesquecível, mas o que desse tempo fizermos para tornarmos a vida do outro um pouco mais gloriosa. Todo sorrir para um mal humorado implica riscos, mas pode ser tudo de que ele precisa.

O tamanho da perda de nossa biblioteca depende do quanto de restrições impusermos para que nela deixemos os outros entrar.

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