26 de mai. de 2011

Cap 24: O homem e os ciscos

Um de costas para o outro: o Prazer e Realidade.

Caminhando dentro da nossa casa-coração o Prazer é um moço que se joga no sofá e lê o segundo caderno. Sentado, ereto, à mesa, Realidade concentrasse na análise de sua revista especializada em economia.

Prazer, na frente da geladeira, se entope de pudim. Com a colher ainda na boca, pensa que um ovo cai bem, gordurento sobre o arroz de ontem, que tem? Realidade, à pia, lava seu alface e não esquece o suco sem açúcar.

Prazer está atrasado para seu pôr-do-sol e Realidade está em ponto para seu encontro com a namoradinha de vinte cinco e sobrenome.
Ainda dá para uma onda?
E que ópera.
Realidade apaga a luz do banheiro e, antes de deitar, olha Prazer debruçado sob uma garota de cabelo ruivo na cama ao lado.
Às vezes, dá vontade de ser Prazer. Fecha os olhos.
Prazer empurra a garota para o lado e se levanta para comer alguma coisa. Vida enfadonha. Antes de jogar-se na cama olha Realidade.
Às vezes, dá vontade de ser Realidade. Fecha os olhos.

Nós somos face Prazer, face Realidade. Diante da aridez do solo da vida olhamos para o céu da esperança e vemos chuva nas nuvens brancas, somos Prazer. Mas o calor que torra a pele e a fome que dói a barriga abaixa a cabeça para o chão rachado, já não chove faz é tempo, somos Realidade.

É preciso ser coerente, mas prato de feijão sem sonhos não enche homem. Homem, aliás, é esse bicho que quer sexo e carinho depois, que paga uma rodelinha de frango em restaurante francês a preço de jóia, que bebe a sede do próximo cálice de vinho e ainda surfa aos cinqüenta.

Insetos vêem flores, homens vêem sorrisos. Leões vêem reprodutoras, homens vêem mães. Pássaros vêem ninhos, homens vêem uma cama com vários pesinhos apontandos na coberta. O gato sobe no muro, os homens vêem além muros. Todo rouxinol canta igual, cada homem sente diferente.

Para o animal o mundo existe e para o homem mundo só é mundo quando há pessoas. O que mesmo é um lenço sem a dona daquele perfume? O que valem jardins sem endereço? Grama sem quem estenda a manta? Sorvete sem boca, rua sem mão, lágrima sem ombro, coração sem ouvido?

Nós vivemos porque desejamos, e dentro do nosso desejo mora a fantasia. É preciso acreditar que aos quarenta e cinco minutos, sem prorrogação, ainda é tempo para o gol de um contra-ataque para podermos sair do edredom quentinho, amanhã, às seis, com chuva.

Os mais robustos Realidade carregam seu Prazer amarrado no pulso, pendurado numa correntinha, pendendo no espelho do carro, perdido na bolsa. Os objetos não fazem milagres, eles apenas não nos deixam esquecer que milagres são possíveis, se quisermos.

Não cremos que ciscos mudem destinos e ainda sim encostamos polegares e fechamos os olhos para três pedidos, sem esquecer de pôr o cisco depois dentro da blusa.

Que chata mesmo seria a vida dos homens sem os ciscos.

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