26 de mai. de 2011

Cap 24:Embrulhar-te

Escrever-te é extremamente fácil ou impossível.

Se quero tocar nesse teu braço pesado, ponho o b junto com o r, depois o a, sem esquecer o ç e por fim tasco redondinho aquele o. Sai fácil minha conversa ao pé da folha com teu corpo. Digo descarada que gosto da minha boca na tua e abaixo a cabeça, tímida, para confessar que fico revivendo a cena em pensamentos solitários.

Mas tem dia que é o reverso, extremamente impossível.

Se quero dizer-te que preciso do teu rosto dormindo frágil no meu travesseiro, que me custa não ter-te na varanda lendo meu jornal (não te importando nem um pouco em deixar todo bagunçado), que no fundo não ligo quando deixas a toalha molhada, embolada sobre a cama, porque vale o preço de ver-te aos pingos, lábios vermelhos, cheiro de desodorante que me desmonta, procurando a calça... Se quero dizer tudo isso, também temo que descubra o quanto me és necessário.

Só que há horas em que escrever é urgente, é desabafo que alivia. Então, sou louca mesma e falo todas aquelas frasezinhas adolescescas com rimas pobres, versinhos melados e quase cor pink, canto também umas músicas dos meus discos-intelectuais que ficas olhando num riso de canto e sempre largas sem interesse na estante. E te faço com toda a concentração dos chefes franceses aquela musse de chocolate, leite-condensado-cholocate-em-pó, só pelo prazer de contemplar-te pensando em algo que te faças esquecer a colher na boca. E me perguntas porque rio, como não rir? Também me aninho no teu peito com a desculpa de um repentino sono trazido pelo almoço e me pegas com jeito de sabedor de mim, numa habilidade que adoro e te fazes fortaleza para meu sonhar tranqüilo, enquanto assistes a minha TV. Nessas tardes sou eu com nove anos e tu nos teus maduros trinta e tal.

Já nem te tocas mais que tuas latas de cerveja estão ao lado do meu chá gelado? Não vês que pegou o hábito de chegar e largar a chave na mesa de vidro da sala num barulho que faz meu coração saltar? Nunca reparou que estás ocupando a cada dia uma gaveta a mais no guarda-roupa e minhas blusas estão sendo obrigadas a se imprensarem entre os shorts? Mas oh, não é uma reclamação, podes trazer mais. E já não é a primeira escova que compras nova e pões no copinho do banheiro, aliás, que eu ponho no copinho, porque displicente sais correndo e larga lá. Tua tolha branca está ao lado da rosa, ou achou que era apenas mais uma cor, uma toalha de reserva? Não, é tua.

Tu. Posso também chamar de você. Fica incomodado quando os molequinhos do play gritam “pega a bola aí, tio”. E só para ressaltar alguma irritação minha, até te chamo de senhor. Falta só poder dizer-te meu. Mas pegas aquele avião para algum trabalho que tenho sempre que compreender e fico aqui nessa saudade funda, mar vermelho, que de chorar apertada contra o travesseiro transbordo . Um patinho pequeno em oceano de lembranças tamanhas.

Meu príncipe desajustado que caminhava na rua quando viu aquela histérica ao celular, com o salto engatado numa fresta da calçada. Assim fácil, como tudo parece simples para ti, abaixastes e tirastes meu pé do sapato. Ajeitei os fios que saíram do coque para ver-te melhor quando levantastes sem pedidos de agradecimentos, apenas aquele rosto quadrado e um olho que me olhou dentro, fiquei nua de salto. Balbuciei um desconcertado muito obrigado, como pode eu não ter achado nenhuma frase coerente, logo eu versada na academia?

E, depois daquele cafezinho, eu ganhei muito mais jardins na minha vida, há mais de um sol, as estrelas levam bem mais tempo para morrerem, o arco-íris sai também em dias sem chuva. Não sei se a primeira coisa que deixou aqui foi aquele seu casaco xadrez cafona, naquela noite de chuva em que entrou, sapatos cheios de água, no meu apartamento impecável e pisou no rabo da minha gata! Incrível recordar cada detalhe...

Se soubesses que aquele sapato me faria caminhar nas nuvens, eu já o teria comprado quebrado ou com muito mais antecedência o prenderia eu mesma, de propósito, num bueiro para ter-te em minha vida antes, quando ainda era só um pedido secreto que eu fazia sempre ao deitar sozinha para dormir.

Falo, impulsiva, louca e desmedida com essa folha de papel que no final sempre morre, amassada, bolinha, atirada à lixeira. Letras que começam caprichadas, pontuação bem arrumada, para depois esquecer-me da gramática e entregar-me em garranchos conforme vou vendo que é tanto papel e pouca coragem. Arremesso no lixo ou embrulho-te e ponho numa gaveta, deito ao teu lado e te cubro.

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